Cory Doctorow, conhecido ativista, blogueiro e experto em tecnologia e cultura digital, apresenta sua perspectiva do Capitalismo de Vigilância em contraposição com as ideias do livro “A Era do Capitalismo de Vigilância” de Zuboff, que já vimos num post anterior: O Capitalismo de Vigilância e o negócio da realidade.
Inicialmente, aborda a ideia de roubo do livre arbítrio por parte das empresas monopolistas, como Google e Facebook, proposta por Zuboff, ao passo que Doctorow defende que o que realmente acontece é a aplicação de estratégias:
- Segmentação: Ocorre milhões de vezes. Os fornecedores de um produto podem ir muito além do grupo focal mais óbvio. Eles podem adicionar a pessoa com base nos artigos que leu, no que comprou recentemente, e-mails que recebeu sobre esse assunto ou no que falou em voz alta.
- Engano: A internet favorece a fraude, permitindo que quem busca enganar outras pessoas o consiga fazer. Além de substituir crenças corretas por crenças incorretas, como acontece nos movimentos antivacina.
- Dominação: As empresas monopolistas exercem sua dominação no mundo, como o Google, que pode decidir a ordem de classificação das respostas às nossas perguntas, tendo um efeito desproporcional nas crenças do público. “O impacto da dominação excede o impacto da manipulação e deve ser central na nossa análise e em qualquer solução que procuremos.“
- Ignorando nossas faculdades racionais: O condicionamento comportamental usa “esquemas de reforço intermitente” com técnicas de engajamento como o uso de cronômetros de contagem regressiva em uma página de conclusão de compra que cria um senso de urgência.
No seu livro, Zuboff fundamenta muitos dos seus argumentos na perspectiva de que os dados devem ser muito valiosos pois o capitalismo de vigilância está ávido por eles. Mas Doctorow visualiza de outra forma, de que estão ávidos pelos dados porque eles tem uma meia-vida muito curta, precisando assim, coletar cada vez mais dados e mais rápido apenas para permanecerem nessa “corrida armamentista”.
Nesse ponto, Doctorow deixa claro que o que realmente permite a dominação das empresas não é a quantidade de dados que possui, mas o fato de serem monopólios, pois a dominação monopolista priva o seu alvo de uma rota de fuga.
Monopólio e o direito ao tempo futuro
Outro ponto principal da argumentação de Zuboff é de que as corporações influenciam nas decisões, tirando “o direito ao tempo futuro”, o direito da pessoa de decidir por si mesma o que fará no futuro, e faz isso por meio de técnicas de influência. Doctorow defende que não é isso que acontece, pois a maioria dessas técnicas de influência não funcionam muito bem ou por muito tempo. Sendo o verdadeiro culpado pelo roubo do tempo futuro o monopólio, pois é capaz de moldar os mercados ao privar os consumidores da sua capacidade de fazerem escolhas livres. Como exemplo, o sistema operativo iOS dos iPhones, usam essas medidas para impedir serviços e instalação de softwares de terceiros, com esse bloqueio se estabelece um monopólio sobre como seus clientes adquirem software para seu dispositivo.
Monopolistas podem comprar pílulas de dormir para os cães de guarda
Igual importância deve ser dada à falta de regulamentação que permite o surgimento de monopólios e Big Techs e quem se beneficia deles.
Existe também a vigilância estatal, que está intimamente relacionada à vigilância privada. Se fossem estabelecidos limites rígidos de capitalismo de vigilância isso prejudicaria a capacidade de vigilância do próprio Estado. Sendo, os dois simbiontes: a Big Tech suga nossos dados para agências de espionagem, e as agências de espionagem garantem que os governos não limitem as atividades da Big Tech tão severamente a ponto de não servirem mais às necessidades das agências de espionagem.
Um remédio para isso, segundo o autor, é a aplicação da legislação antitruste.
Ronald Reagan, pioneiro do monopolismo tecnológico
A tecnologia nasceu no momento em que a aplicação da lei antitruste estava sendo desmantelada. O responsável pelo evento foi Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989, com auxílio de Robert Bork. Essas indústrias atingiram seu status concentrado por meio de táticas que eram proibidas antes do triunfo de Bork: como a fusão com grandes concorrentes e um conjunto de táticas anticompetitivas que antes eram ilegais, mas não são mais.
O excepcionalismo tecnológico
Outro problema com as Big Techs é que elas adotaram o excepcionalismo tecnológico, de que não devem estar sujeitas às leis e normas mundanas. Isso não é verdade, pois ela pode ser submetida ao antimonopólio de trust busting e proibições de fusões para monopólio e outras táticas anticompetitivas. Além de usarem o argumento de excepcionalismo para esconderem como operam, tais práticas não seriam aceitas em outros ramos, como o da engenharia, onde se detalha todos os materiais utilizados e projetos de construção. Além de coletarem tantos dados quanto possível em função do lucro e gastarem o mínimo possível na proteção deles, o que resulta em altos riscos de vazamento de dados pessoais.
Um monopólio sobre meus amigos
As redes sociais são valiosas não apenas pelo conteúdo que proporcionam, mas também pelas conexões que facilitam. Quando uma plataforma monopoliza essas conexões, ela controla um aspecto significativo da vida social dos indivíduos. Isso torna difícil para os usuários deixarem a plataforma, mesmo que estejam cientes dos abusos de privacidade ou outras práticas prejudiciais.
É importante destacar que o Facebook e demais empresas tiveram uma vantagem para conquistar seus usuários na época em que surgiram, a interoperabilidade adversarial, que é quando um fabricante produz um produto que interopera com o produto do outro fabricante apesar das objeções dele. Porém a interoperabilidade adversarial encontra-se atualmente presa em leis e regulamentos que adicionam riscos legais para quem quiser praticar.
O apelo do autor é que para substituir os produtos das Big Techs precisamos liberar a interoperabilidade adversarial, permitindo que os usuários que saíram continuem a se comunicar com usuários que ainda não saíram das redes sociais.
Um momento “ecologia”
Na finalização, Doctorow apresenta sua solução para destruir o Capitalismo de Vigilância e lutar contra o monopólio das Big Techs, para isso precisamos encontrar nossa vontade política, e para isso ele sugere que precisamos de algo como o momento “ecologia” que uniu os ativistas ambientais que estavam atuando em áreas diferentes e os fizeram entender que na verdade estavam lutando por uma causa em comum. Para o autor, isso seria possível pois é fácil encontrar pessoas que foram injustiçadas por monopolistas que destruíram suas finanças, sua saúde, sua privacidade, sua educação e as vidas de pessoas que amam. Essas pessoas têm a mesma causa que as pessoas que querem acabar com a Big Tech e os mesmos inimigos.
Por hora devemos focar em retomar as leis antitruste e evitar que o cenário piore, com mais monopólios. Depois, para melhorar nossa realidade, o autor defende que teremos que construir coalizões com outros ativistas no movimento de ecologia antimonopólio, e formar um movimento de pluralismo e autodeterminação.
Esse post está baseado no livro:
DOCTOROW, C. How to destroy surveillance capitalism. New York: Medium Editions, 2020.
Postagem original, no qual se baseia o livro “How to Destroy Surveillance Capitalism”: https://onezero.medium.com/how-to-destroy-surveillance-capitalism-8135e6744d59
Essa foi uma das leituras do Grupo HIT. Humanos, Informação, Tecnologia.