O que é o capitalismo
Podemos definir o capitalismo como um sistema econômico caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção e pela criação de bens ou serviços para obtenção de lucro (IMF). Os sistemas capitalistas modernos geralmente incluem uma economia orientada para o mercado, na qual a produção e o preço das mercadorias, bem como a renda dos indivíduos, são ditados em maior medida pelas forças do mercado resultantes das interações entre empresas privadas e indivíduos do que pelo planejamento central realizado por um governo ou instituição local (Britannica).
Capitalismo de vigilância e superávit comportamental
O Capitalismo de Vigilância é um modelo econômico que transforma a experiência humana em matéria-prima para dados comportamentais.
Esses dados são utilizados para aprimorar produtos e serviços, mas a maior parte é convertida em “superávit comportamental”. Isto é, os dados excedentes coletados sobre o comportamento dos usuários que vão além do necessário para melhorar produtos e serviços.
Esse superávit comportamental alimenta processos avançados de fabricação, criando produtos de predição que antecipam nossas ações futuras. Tais predições são comercializadas em mercados de comportamentos futuros, gerando imensa riqueza para empresas que apostam em nosso comportamento.
A competição nesse mercado leva os capitalistas de vigilância a buscar dados cada vez mais preditivos, como nossas vozes, emoções e personalidades. Eles tentar intervir no nosso comportamento para moldá-lo e aumentar sua previsibilidade, criando um ciclo vicioso onde não apenas conhecem, mas também influenciam nossas ações em grande escala.
Essa nova forma de poder, chamada de instrumentarismo, molda o comportamento humano para fins de lucro de terceiros. Diferente de armamentos ou exércitos, esse poder se exerce por meio de uma arquitetura computacional cada vez mais ubíqua, composta por dispositivos e espaços “inteligentes”.
O capitalismo de vigilância subverte o sonho digital inicial de inclusão e democratização do conhecimento. Em vez disso, transforma a conexão digital em um meio para fins comerciais, funcionando de forma parasitária e autorreferente. Google, pioneiro desse modelo, foi seguido por Facebook, Microsoft e Amazon. Seus produtos e serviços seduzem usuários para operações extrativas, onde nossas experiências pessoais são convertidas em lucro para outros.
Nós, usuários, não somos clientes, mas fontes de superávit comportamental. As empresas que negociam em mercados de comportamento futuro são os verdadeiros clientes desse sistema. Nossa dependência da internet, saturada de comércio subordinado ao capitalismo de vigilância, nos torna vulneráveis a um sistema do qual é difícil escapar. Esse conflito cria um entorpecimento mental, levando-nos a racionalizar ou ignorar nossa vigilância constante.
Em suma, o capitalismo de vigilância impõe uma escolha ilegítima aos indivíduos do século XXI, moldando nosso comportamento sem nosso consentimento. Ele acumula vastos domínios de conhecimento sobre nós, utilizando esse poder para fins que não nos beneficiam. Enquanto esse modelo prosperar, a propriedade dos meios de modificação comportamental eclipsará a propriedade dos meios de produção como fonte de riqueza e poder no século XXI.
Como Shoshana Zuboff destaca, “as empresas competem por uma fatia de futuros mercados comportamentais, prevendo e moldando nosso comportamento para seus próprios interesses comerciais”.
Computação ubíqua
Além da coleta e análise de dados comportamentais, o capitalismo de vigilância evoluiu para incluir a “computação ubíqua”. Este conceito, introduzido por Mark Weiser, refere-se à integração invisível da tecnologia na vida cotidiana, tornando-a praticamente indistinguível do ambiente em que vivemos. Weiser descreveu que “as tecnologias mais profundas são aquelas que desaparecem”, referindo-se à maneira como a computação deve se entrelaçar no tecido da vida diária sem ser notada.
A computação ubíqua, no contexto do capitalismo de vigilância, vai além da simples coleta de dados. Ela implica em uma presença contínua e não intrusiva de dispositivos e sistemas que monitoram e coletam dados em tempo real, de maneira silenciosa e eficiente. Esses dados são então usados para criar predições comportamentais altamente precisas e personalizadas.
O Negócio da Realidade
O “negócio da realidade” surge como uma consequência dessa evolução tecnológica. Economias de escala e de escopo são agora complementadas pelas “economias de ação”, onde as empresas não apenas preveem, mas também moldam o comportamento dos usuários. As máquinas intervêm no estado do jogo da vida real, ajustando e influenciando ações para garantir resultados comerciais desejados. Exemplos incluem a personalização de anúncios, a manipulação de feeds de notícias e até a interrupção de serviços como o desligamento do motor de um carro por falta de pagamento.
Como afirma Shoshana Zuboff, “O capitalismo de vigilância gera uma nova espécie de poder que chamo de instrumentarismo. O poder instrumentário conhece e molda o comportamento humano em prol das finalidades de terceiros.” Este poder se manifesta por meio de uma arquitetura computacional ubíqua, composta por dispositivos conectados em rede que operam de maneira invisível, mas eficaz, para servir aos interesses dos capitalistas de vigilância.
Esta evolução tecnológica e comercial redefine a relação entre indivíduos e tecnologia, onde a privacidade é sacrificada em nome da previsão e controle comportamental, evidenciando um novo tipo de capitalismo que explora não apenas os dados, mas também a própria natureza humana.
Conclusão
O capitalismo de vigilância redefine as dinâmicas de poder na sociedade ao extrair e analisar dados comportamentais para prever e influenciar ações humanas. Isso coloca em risco a privacidade e a autonomia dos indivíduos. Como enfatiza Shoshana Zuboff, essa nova forma de capitalismo “gera uma nova espécie de poder” que necessita urgentemente de regulamentação e maior conscientização pública para proteger direitos fundamentais.
A computação ubíqua e o negócio da realidade transformam a forma como interagimos com a tecnologia e nos expõem a novas formas de vigilância. Através da coleta constante e da intervenção no comportamento, o capitalismo de vigilância molda nossas ações em uma escala sem precedentes, levantando importantes questões sobre privacidade, autonomia e poder no mundo digital.
Esse post está baseado nos capítulos 1 e 7 do livro:
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.
Para saber mais:
Chaves, Dheyvid. Trabalho no Capitalismo Cognitivo. Blog enriquemuriel.com, 2024. Disponível em: https://enriquemuriel.prof.ufsc.br/trabalho-no-capitalismo-cognitivo/