A “bostificação” (enshittification em inglês) é um termo informal cunhado por Cory Doctorow e usado para descrever o processo pelo qual uma plataforma online decai em qualidade ao longo do tempo até seu fim. Podemos perceber isso em várias redes sociais populares, como Facebook, Twitter e até mesmo em plataformas que foram sucesso no passado, como o Orkut ou MySpace (descansem em paz).
Definição
Doctorow define o processo de bostificação:
Assim é como as plataformas morrem: Primeiro, elas são boas para seus usuários; depois, abusam de seus usuários para melhorar as coisas para seus clientes empresariais; por fim, abusam desses clientes empresariais para recuperar todo o valor para si mesmas. Então, elas morrem.
Cory Doctorow. The ‘Enshittification’ of TikTok.
Esse fenômeno acontece quando uma plataforma, inicialmente atrativa e funcional, começa a priorizar lucros e interesses comerciais em detrimento da experiência do usuário. Isso pode resultar em mudanças desagradáveis na interface, aumento de anúncios invasivos, redução na qualidade do conteúdo, aumento de custos para vendedores e até mesmo em práticas questionáveis de privacidade e segurança dos dados dos usuários.
Plataformas como Amazon ou Redes Sociais como Instagram, Facebook o TikTok se tornam cruciais para muitas pessoas, pois é onde podem comprar os productos que precisam ou encontram amigos, familiares, colegas de trabalho e oportunidades profissionais.
Quando essas plataformas se tornam tão importantes em nossa vida, os custos de mudança aumentam. Não é só aprender a usar outra plataforma, mas também perder todas as conexões e interações construídas ao longo do tempo. Isso faz muitos usuários se sentirem “presos” à plataforma, mesmo discordando de algumas mudanças ou políticas.
É nessa situação que algumas plataformas procuram exprimir ao máximo a dependência dos usuários com sua plataforma para monetizar até a última gota, embora isso signifique oferecer um pior serviço, mais anúncios, menos resultados esperados, mais poluição visual ou produtos recomendados de baixa qualidade. O objetivo da empresa, que antes era oferecer o melhor serviço, agora mudou para extrair o máximo dos participantes.
O caso da Amazon
Quando uma plataforma começa, ela precisa de usuários, então se torna valiosa para os usuários. Pense na Amazon: por muitos anos, ela operou com prejuízo, usando seu acesso aos mercados de capital para subsidiar tudo o que você comprava. Vendia produtos abaixo do custo e os enviava abaixo do custo. Mantinha uma busca limpa e útil. Se você buscasse por um produto, a Amazon se esforçava ao máximo para colocá-lo no topo dos resultados da busca.
Isso foi um ótimo negócio para os clientes da Amazon. Muitos de nós aderiram, e muitos varejistas tradicionais minguaram e faliram, tornando difícil ir a outro lugar. A Amazon nos vendeu ebooks e audiobooks que estavam permanentemente bloqueados em sua plataforma com DRM, então cada dólar que gastávamos em mídia era um dólar que teríamos que abrir mão se excluíssemos a Amazon e seus aplicativos. E a Amazon nos vendeu o Prime, nos fazendo pagar antecipadamente por um ano de frete grátis. Os clientes Prime começam suas compras na Amazon, e 90% do tempo, não procuram em nenhum outro lugar.
Isso atraiu muitos clientes comerciais – vendedores do Marketplace que transformaram a Amazon na “loja de tudo” que ela havia prometido desde o início. À medida que esses vendedores se acumulavam, a Amazon passou a subsidiar os fornecedores. Criadores do Kindle e do Audible receberam pacotes generosos. Vendedores do Marketplace alcançaram grandes audiências e a Amazon cobrava comissões baixas deles.
Essa estratégia significava que se tornava progressivamente mais difícil para os compradores encontrar coisas em qualquer lugar que não fosse a Amazon, o que significava que eles só buscavam na Amazon, o que significava que os vendedores tinham que vender na Amazon.
Foi aí que a Amazon começou a colher o excedente de seus clientes comerciais e enviá-lo aos acionistas da Amazon. Hoje, os vendedores do Marketplace estão entregando mais de 45% do preço de venda para a Amazon em taxas abusivas. O programa de “publicidade” de $31 bilhões da empresa é na verdade um esquema de suborno que coloca os vendedores uns contra os outros, obrigando-os a dar lances pela chance de estar no topo da sua busca.
Buscar na Amazon não produz uma lista dos produtos que mais se aproximam da sua busca, traz uma lista de produtos cujos vendedores pagaram mais para estar no topo dessa busca. Essas taxas estão embutidas no custo que você paga pelo produto, e a exigência de “Nação Mais Favorecida” da Amazon significa que os vendedores não podem vender mais barato em outros lugares, então a Amazon tem controlado os preços em todos os varejistas.
Busque por “camas de gato” na Amazon e a tela inteira é de anúncios, incluindo anúncios de produtos que a Amazon copiou de seus próprios vendedores, colocando-os fora do mercado (terceiros têm que pagar 45% em taxas abusivas para a Amazon, mas a Amazon não cobra essas taxas de si mesma). No total, as cinco primeiras telas de resultados para “cama de gato” são 50% anúncios.
Isso é a bostificação: os excedentes são primeiro direcionados aos usuários; então, uma vez que estão presos, os excedentes vão para os fornecedores; então, uma vez que estão presos, o excedente é entregue aos acionistas e a plataforma se torna uma pilha inútil de merda. Desde lojas de aplicativos móveis até o Steam, do Facebook ao Twitter, este é o ciclo de bostificação.
Cory Doctorow. Tiktok’s enshittification.
Provavelmente conhece outros casos, como o YouTube, que inicialmente não possuía publicidade, evoluindo para um modelo com pouca publicidade, não intrusiva e lucrativa para os criadores. No entanto, hoje em dia, assistir a vários vídeos na plataforma se tornou complicado devido à quantidade excessiva de publicidade, e os criadores enfrentam desafios crescentes para obter lucro. Eles lidam com inúmeras exigências, incluindo restrições ocultas (shadow banning) relacionadas aos temas abordados ou palavras utilizadas, além de estarem sujeitos ao funcionamento opaco do algoritmo da plataforma, entre outros.
Não podemos passar ao seguinte ponto sem antes comentar sobre a Uber e seu algoritmo secreto que, além de decidir o preço das corridas, altera a porcentagem que repassa aos motoristas em cada uma delas, se aproveitando cada vez mais, tanto do trabalhador que recebem menos quanto dos usuários que pagam mais pelas viagens.
Monetização
Monetizar é um verbo que a gente escuta com bastante frequência, mas transformar a atenção em lucro é uma tarefa complexa que levanta dúvidas sobre se existe verdadeiramente uma “Economia da Atenção”. A atenção não pode ser tratada como uma moeda convencional, nem como uma reserva de valor ou uma medida padrão. É mais comparável a uma criptomoeda, cujo valor é subjetivo e só se materializa ao ser trocada por dinheiro real por meio de um processo de ‘monetização’. Então, depois você precisa “monetizar” isso, isto é tem que trocar o dinheiro “de brinquedo” por dinheiro real.
Soluções possíveis
Os legisladores e criadores de políticas têm um papel chave a desempenhar no cenário das plataformas digitais em declínio. Em vez de se concentrarem em prolongar a vida das plataformas moribundas, sua atenção deve ser direcionada para proteger os interesses dos usuários. Isso significa estabelecer direitos claros, como o direito à privacidade e o direito à liberdade de escolha.
Além disso, políticas que garantam a liberdade de saída das plataformas são essenciais. Os usuários devem ter o direito de deixar uma plataforma sem perder o acesso às comunidades e conteúdos que já faziam parte de sua experiência digital. Isso envolve garantir a portabilidade dos dados e a interoperabilidade entre plataformas, para que os usuários possam migrar facilmente sem perder o que já construíram.
Outro aspecto importante é incentivar a diversidade e a concorrência no mercado de plataformas digitais. Isso significa criar um ambiente regulatório que estimule a inovação, a transparência e a responsabilidade das empresas, evitando práticas monopolistas ou anti-competitivas que prejudiquem a escolha dos usuários.
Isto é, se concentrar em promover um ambiente digital saudável e dinâmico, onde os direitos dos usuários sejam protegidos, a liberdade de escolha seja preservada e a competição seja incentivada para benefício de todos.
Para saber mais:
Enshittification. https://en.wikipedia.org/wiki/Enshittification#cite_note-BlogCoinage2022-1
Social Quitting. Cory Doctorow. https://doctorow.medium.com/social-quitting-1ce85b67b456
Tiktok’s enshittification. Cory Doctorow. https://pluralistic.net/2023/01/21/potemkin-ai/#hey-guys